Sesc PR
Paraná

Entrevista com Luci Collin

Naturalmente poeta, naturalmente musicista

Por Silvia Bocchese de Lima

A escritora, tradutora, professora universitária e musicista Luci Collin é curitibana e sua obra se destaca pela experimentação e pela abordagem de temas da pós-modernidade. Luci tem 24 livros publicados e transita por gêneros como a poesia, o conto, o romance e o teatro, investe estruturalmente na musicalidade e na fragmentação textual. 

É graduada em Piano, pela Escola de Música e Belas Artes do Paraná; em Letras Português/Inglês, pela Universidade Federal do Paraná; tem mestrado em Letras/Literatura pela UFPR e doutorado em Estudos Linguísticos e Literários em Inglês na Universidade de São Paulo, além de dois pós-doutorados em Tradução de Literatura Irlandesa, na USP.

Ocupa a cadeira de número 32 da Academia Paranaense de Letras. Em 2017 recebeu o prêmio Jabuti na Categoria Poesia, concedido pela Câmara Brasileira do Livro, e o Prêmio Clarice Lispector, na Categoria Conto, pela Fundação Biblioteca Nacional, em 2022; foi finalista do Prêmio Oceanos, em 2015, e já participou de diversas antologias nacionais e internacionais, nos Estados Unidos, Alemanha, França, Bélgica, Uruguai, Argentina, Peru e México.

Confira a entrevista:

Neste ano, você estará conosco no interior do estado, percorrendo as regiões Centro Sul e Sudoeste, em Guarapuava, Francisco Beltrão e em Pato Branco, com oficinas sobre criação poética e bate-papos sobre a temática da edição de número 43 da Semana Literária do Sesc PR: Poesia em toda a parte. Carlos Drummond de Andrade dizia que escritor não somente tem uma certa maneira especial de ver as coisas, como é impossível vê-las de qualquer outra maneira. Para um escritor, poesia em toda a parte é um desafio, é uma promessa, é utópico ou é concreto?

Felicíssima com a minha intensa participação. Eu estarei em Guarapuava, em Francisco Beltrão e em Pato Branco. São três cidades das quais eu gosto muito e que tem um movimento interessantíssimo em torno da literatura. Então, sem dúvida, é uma alegria muito, muito grande poder participar com as oficinas, oficinas de criação literária, oficinas de poesia e com os bate-papos. Essas duas atividades dizem muito para mim, tanto o momento da oficina, da discussão, do fazer literário, da palavra poética e tudo mais, e também os bate-papos. Quando a gente tem essa interlocução e conhece mais de perto as pessoas, os leitores, as pessoas envolvidas com a poesia, as pessoas apaixonadas pela poesia e as pessoas que encontram na poesia essa grande motivação, a experiência de da sensibilização e tudo mais, a sensibilização pela palavra. Então, é um momento de muita alegria. Essa citação do Carlos Drummond, ela é, na verdade, uma grande provocação pra gente pensar também que a condição poética, qual seja, a condição que emociona e coloca através da palavra, a  experiência para o outro, ela permeia não só o olhar do poeta. Todas as pessoas com um olhar amoroso para receber alguma coisa que nos emociona e que, portanto, alguma coisa que é transformadora, todas essas pessoas estão embebidas nessa grande satisfação, nesse momento tão profundo que é o encantamento pelo poético. Mas nós também encontramos o poético não só na palavra, às vezes até o silêncio também é poético, em alguns momentos emocionantes, nos faltam até as palavras. Enfim, eu gosto muito de pensar, e talvez o Drummond estivesse referindo justamente a isso, para os escritores, para todas as pessoas que se deixam emocionar pela palavra, afinal, os bons leitores. Nós temos essa grande oportunidade de entrega e a palavra sem dúvida vai nos alimentar, vai nos estimular, vai nos despertar, aquele tipo de curiosidade que envolve, como eu disse, essa transcendência. Então, sim, eu acho que nós nos cercamos de possibilidades, de encantamento pela palavra, é quase um presente que nós oferecemos continuamente a nós mesmos. E assim é quando nós nos aproximamos das expressões artísticas. Em qualquer uma das linguagens artísticas, aqui estamos falando da literatura, mas também podemos falar do cinema, podemos falar da dança, da música, enfim, de todas as artes, que aí estão para promoção de experiências que tornam o nosso cotidiano mais profundo, mais humanizado e, portanto, mais transformador, como eu disse.

Luci, Leminski será o nosso grande homenageado nesta edição da Semana Literária. Em 2024 ele completaria 80 anos e, apesar de ter vivido apenas 44 anos, deixou uma obra fantástica; encantou pessoas; foi genial como pensador, como inquieto cultural. Ele e a obra que produziu ainda transcendem fronteiras do tempo, do espaço. Há quatro décadas ele chegou a testemunhar que estava admirado com o nível técnico do trabalho que você produzia, principalmente “nesta geração que pensa que qualquer coisa é poesia”. Conta pra gente como foi sua relação com Leminski? 

Bem, eu tive uma relação de grande admiração pelo Paulo Leminski, naturalmente, não é? Quando eu lancei meu primeiro livro – que é a data justamente dessas palavras aí que você mencionou, que foi em 1984 –  ele conheceu a minha poesia, mas ele já era uma figura consagrada. Eu era uma jovem, tinha 17, 18 anos naquela época, e convivi então com o Paulo Leminski, que já era bastante reconhecido. Contextualizarmos esse momento, claro que foi especialíssimo, eu, uma jovenzinha, já retendo essa oportunidade de um certo convívio com o poeta da monta do Paulo Leminski. Naquela época –  nós temos que pensar na Curitiba daquele momento –, Curitiba viveu nos anos 80, já desde a década de 70, mais nos anos 80, uma grande profusão de criatividade, junto com o Paulo, nós temos toda uma geração de cabeças muito, muito criativas, em todas as artes. Curitiba era um grande centro de produção de pensamento, de emoção, de uma verdadeira vanguarda. Muitas cabeças nas artes plásticas, no cinema, na música e na literatura. Grandes pares aí do Paulo Leminski, eram cabeças muito inventivas, então eu me beneficiei muito de toda essa atmosfera. Como eu disse, a oportunidade ali de conviver, eu convivi pouco com o Paulo Leminski, mas ele já era um poeta consagrado, mas eu pude beber daquela atmosfera, grande profusão de ideias, momentos muito poéticos, muito reveladores. Paulo era uma figura muito marcante, porque era uma cabeça que conseguia conjugar essa grande impressão que eu tive desses momentos que nós conversamos, que eu passei ali me inspirando mesmo. Ele conseguia conjugar muitas ideias e conseguia depurar com uma velocidade incrível, muitas percepções, uma sensibilidade excepcional. Somado a isso, a grande habilidade de colocar em profundidade, colocar tudo isso em palavras. Grande privilégio! Eu sempre me lembro com muita gratidão, sou muito grata a todos, não só ao Paulo, mas a todas aquelas cabeças e aqueles corações tão belamente envolventes, envolvidos também em toda essa percepção e tudo mais, mas foi tudo uma década, uma década em profusão de criatividade, de inventividade em Curitiba, gerou muitos bons frutos.

Luci, você é uma artista multifacetada, com uma formação extensa tanto na música quanto na literatura. Essas duas formas de arte trabalham juntas, se complementam… por conta do ritmo, da métrica, da expressão emocional. Como você une essas suas artes nos seus trabalhos? Sei que alguns trabalhos que você traduziu também estão relacionados com a música. Como essas diferentes áreas de estudo e atuação influenciam sua obra literária?

Eu tenho uma relação com a música que, sem dúvida, ela se estende para a literatura quase que de uma maneira natural. Comecei a estudar música quando tinha sete anos e tive toda uma formação. Primeiro estudando piano, cheguei a me graduar, eu sou bacharel em piano. Alguns anos depois fiz um segundo bacharelado também em música, aí como percussionista, estudando percussão clássica. Enfim, tem toda uma complexidade nessa aproximação da música e da poesia, da literatura, mas ao mesmo tempo é tudo tão direto, é tudo tão natural, é tudo tão incrivelmente uno que às vezes a gente pensa, nossa, foi uma péssima ideia quando lá no iluminismo eles começaram a etiquetar todas as coisas e a gente vê que, de fato, a necessidade de colocar tudo em caixinhas, né, às vezes contamina um pouco a coisa mais natural. Estou me referindo exatamente à condição da música e da poesia, né, quando nós pegamos, por exemplo, ideia da poesia lírica. A poesia pertence a esse gênero lírico, que vem justamente do instrumento musical lira. Então, aí a gente já tem uma afirmação dessa condição mais natural, como você citou, de uma rítmica, da melodiosidade, da musicalidade. Isso tudo é tão natural. Quando a gente pega um poema, por exemplo, nós quase que esquecemos que o poema é uma peça sonora. Mesmo os poemas visuais, eles vão trabalhar com a sonoridade, a maneira como nós concebemos uma palavra. Infelizmente, a poesia, na maioria das vezes, aparece quase que encarcerada dentro dos livros e nós admitimos apenas uma leitura silenciosa. leitura subjetiva é importantíssima, mas para sermos mais justos com a poesia, nós temos que pensá-la enquanto uma entidade sonora. Um poema é uma peça riquíssima de sonoridade rítmica, de movimento. Quando nós destituímos o poema, ou seja, quando nós o mantemos silencioso, quase que amputado da sua condição mais genuína, nós não estamos, portanto, sendo minimamente justos com a poesia, porque nós estamos cortando a sua condição primordial. Então, essa relação entre essas duas linguagens artísticas, música e literatura, para mim sempre foi muito, muito natural, como um fluxo mesmo. Eu me beneficiei, creio, desse rigor, dessa disciplina da leitura de partituras e tudo mais, da parte interpretativa também, da parte mais matemática da música. Tudo isso a gente acaba carregando para a literatura e entendendo melhor quando você, por exemplo, numa partitura. Quem já estudou música vai ver isso de uma maneira muito simples, muito direta. Nós temos, por exemplo, as frases musicais, nós temos os grandes períodos, que seriam os parágrafos. Daí nós temos as semifrases, os incisos, quer dizer, tem toda uma terminologia que inclusive é igual à terminologia que nós vemos na literatura. Quando nós pegamos os termos musicais de timbre, fraseado, altura do som, intensidade, tudo isso, a começo de conversa, já está na nossa voz, na maneira como nós conversamos, com intenção, com intensidade, fazendo pausas. Aí a gente vai para a literatura, a própria estrutura de uma frase com suas vírgulas, ponto, ponto e vírgula, parágrafos, enfim, parênteses. Tudo isso é uma maneira de mostrar a respiração, mostrar esse movimento de sonoridade, esses espaços em branco também que sinalizam um certo silêncio. Tudo isso é muito próximo à música. Eu sou muito grata a essa experiência, de poder pensar a música e senti-la enquanto literatura e vice-versa.

A Universidade Estadual de Maringá lançou recentemente a listagem das obras que serão cobradas nos vestibulares de inverno e de verão da instituição e três contos de A árvore todas, de sua autoria, estão nela. Os contos trazem reflexões sobre identidade, criação literária e sobre a posição da mulher na literatura. Os textos também são cheios de significados ocultos, trazem críticas e são um convite ao pensar além das convenções. Como você define esta obra? Para o público que está nos ouvindo que dicas você daria sobre as possíveis cobranças que esta obra terá no vestibular? Que aspectos do texto, da linguagem e da escrita não podem passar despercebidos pelos leitores? 

Olha, tenho um contentamento de ver a minha obra. Esse ano é um ano muito, muito especial para mim. Estou comemorando 40 anos desde a minha primeiríssima publicação, como mencionei, que foi em 1984. Eu tenho essa enorme satisfação de ver que, depois de 40 anos, aquela minha proposta inicial, que num primeiro momento pareceu, a alguns leitores, um pouco mais hermético, mais fechada, hoje são obras que esses jovens estudantes vestibulantes, Claro, enfrentam ali, mas eu recebo muitos comentários de novos leitores que acabam descobrindo a minha obra justamente porque vão iniciar um convívio de análise com esses contos. Já tive outros livros também nessas listas de vestibular e é maravilhoso, a gente chega a muitos leitores, claro que é uma situação ali em que, puxa, são leitores que vão disputar uma vaga numa universidade para um curso superior, então é um momento, essa relação nem sempre é mais prazerosa, porque eles vão ser submetidos a um teste, um exame, mas eu tenho um retorno que me emociona muitíssimo. E muitos, muitos desses leitores, através do vestibular, eles chegam até a minha escrita. Então é uma alegria enorme. E aí você me pergunta, né, como é que eu defino isso e que dicas eu poderia dar. Bom, a maior dica para entender a minha proposta literária é tentar compreender que eu parto de uma noção que é justamente aquela do pequeno desvio. O que é o pequeno desvio? É um passinho para fora da convenção. Eu gosto muito de trabalhar, alguns críticos dizem que é a chamada literatura experimental, mas a gente não precisa se agarrar a nenhuma fórmula, nenhuma etiqueta, nada disso. Gosto muito de pensar que os meus textos têm se tornado mais populares entre os jovens justamente porque essas cabeças que já nasceram, são totalmente de uma era digital e já nasceram abrindo janelas, Essas cabeças vão encontrar, na minha literatura, um tipo de relação que já lhes é familiar. Porque eu sempre trabalhei muito com fragmentação e com cortes, com edição, digamos, misturando uma série de vetores. Então, se eu pudesse comentar alguma coisa, dar alguma dica, é pensar assim, por que eu me afasto da convenção? Por que que às vezes você lê alguma coisa ali, um desses textos, desses contos, e num primeiro momento passa por uma sensação de estranhamento? Saiba que é deliberado, é um estranhamento mesmo, porque a partir do estranhamento, a gente não joga provocações no texto, mas é a partir do estranhamento que nós vamos conseguir operar algum tipo de transcendência, novo pensamento, não é? Então se nós ficamos sempre, sempre só na convenção, a comunicação se dá de uma maneira muito mais limitada, não é? Mas se eventualmente há um estranhamento, você fala, puxa, não é? Há um pequeno desvio da convenção, o que que isso vai gerar? Mais reflexão. Então é isso. Uma primeira leitura, esses contos podem parecer um pouco estranhos, mas eles pedem a participação do leitor, eles pedem que o leitor também construa, não é? Não tem nada muito pronto ali. Então, às vezes você lê uma frase que pareceu meio esdrúxula, meio estranha e meio sem sentido, leia novamente e veja como a frase está te puxando para participar. Você também vai rechear essas lacunas e tudo mais. Então, é um outro tipo de literatura, um pouco diferente da tradição que vai até o final do século XIX, que era puramente descritiva. Nada contra esses escritores, pelo contrário, nós temos os escritores magníficos, mas hoje o olhar tem uma velocidade, estamos no século 21, tem uma velocidade, agilidade que é outra. Então esses textos são mais fragmentados, mas eles são muito próximos a como o cérebro humano e as vidas humanas estão estruturadas hoje. Então, é isso que eu poderia dizer. O que não pode passar despercebido pelos leitores são justamente essas características que marcam o meu texto. De maior liberdade a muita ironia, que é um recurso, uma estratégia crítica. Um texto que busca, a partir das brechas, suscitar mais reflexão.

Você tem dois pós-doutorados em tradução Literária. Como se dá o seu processo de escolha de uma obra a ser traduzida? A tradução literária influencia de alguma forma a sua escrita autoral? Se sim, de que maneira?

Agora falando especialmente sobre o fazer tradutório, aqui sim é muito importante conhecer esses elementos de musicalidade, porque na tradução, a gente costuma dizer, o tradutor tem que ser o melhor leitor de uma obra, porque ele tem esse encargo, que é muito importante, de poder, através da tradução, transmitir essa obra com o máximo rigor, a máxima delicadeza, respeitando a estilística, respeitando as características mais importantes da dicção, no caso da poesia, a dicção de um poeta, que é que caracteriza aquela voz. Também na tradução nós nos valemos muito dessa interpretação, naturalmente, mas nós nos valemos muito desse saber, desse conhecimento do que constitui aquela maneira de falar, que vai caracterizar uma determinada voz literária. Então, sem dúvida, essas noções todas da proximidade entre música e literatura, essas são noções que se expandem também para o fazer tradutório.

Luci, Leminski era um provocador. Ele dizia que a palavra é “essencialmente política, portanto, ética”, destacando a responsabilidade e o impacto que a linguagem carrega. Como você enxerga a relação entre a escrita e a política? Você concorda com Leminski? De que maneira essa visão influencia sua própria prática literária?

Esse comentário é uma grande provocação, né? Agora eu temo um pouco que a gente também simplifique. Nós temos nessa frase, né, que a palavra é essencialmente política, sem dúvida, e ética. Mas aí nós temos dois âmbitos do pensamento humano que são inexauríveis, e que requerem muita dedicação até para a própria compreensão do que que se quer dizer com política e também que se quer dizer com ética em toda a sua extensão. Agora, destacar essa responsabilidade, destacar esse grande impacto que a linguagem carrega, isso é muito precioso. Isso é para mim, essa pulsão política e, naturalmente, a condição ética, elas vão impregnar todo o texto que é genuinamente estético. Eu acho que aí já começa a sua posição, enquanto criador, enquanto artista, que vai se manifestar em função de percepções suas e do mundo que te cerca com essa grande responsabilidade, compreendendo, investindo nesse impacto todo. É um processo que tem uma complexidade, processo sem dúvida, que deve ser amadurecido ao longo de toda uma trajetória enquanto criador.

Quero dizer que todos os artistas, para que se sintam seguros ao chamarem a si mesmos de artistas, que tenham essa compreensão desse impacto político nesse sentido maior, de estrutura socialmente, e aí a gente vai falar de outros âmbitos, filosoficamente, antropologicamente, etc. E compreender impacto, isso é de uma responsabilidade única, seríssimo isso, né? Como é que eu enxergo essa relação e de que maneira, concordando então com o Leminski, essa visão influenciaria ou influencia a minha prática? Eu disse anteriormente que uma das estratégias que eu uso é a ironia.

Eu nunca escrevi literatura pensando em ser engraçada, não é uma escrita que seja cômica, mas é uma escrita que é tragicômica, é uma escrita que suscita ou pretende suscitar não só aquele incômodo, um pequeno desconforto, mas que pretende suscitar a apreensão filosófica. Eu sempre digo, literatura não é filosofia, mas é filosófica. Eu acho que já nessa minha postura, acreditando que arte é oportunidade de transcendência, não é aquela coisa que a literatura vai mudar as vidas, vai mudar o mundo de uma maneira irreversível. Não, são as pequenas transformações, mas, sobretudo, uma pequena contribuição para que transformações no olhar se deem. Isso é uma função estética, ela tem esse impacto social, de comunicação e tudo mais. Então, eu acho que me influencia desde sempre pela minha postura, pelo tipo de literatura que eu decidi fazer e que faço depois de 40 anos de carreira, sigo com essa mesma intenção, com esse para mim, com o mesmo vigor, acreditando que… não só acreditando, mas me dedicando muito a isso, para que a minha voz se mantenha coerente nesse sentido. A minha prática, eu acho que reflete essa minha postura, uma postura crítica perante o mundo. É uma postura crítica não no sentido de reclamar das condições, mas amorosamente crítica, pensando nos leitores como grandes companheiros, são olhares que estão em busca de uma construção de uma percepção maior e, às vezes, com o uso do que é o chamado tragicômico, é aquela reflexão que, às vezes, é até dolorosa, mas que você, através do primeiro momento de riso, de estranhamento, daqui a pouco você pensa, puxa, quanto de mim existe uma figura que, no primeiro momento eu achei, ou acreditei, ou vi como uma caricatura, não é? Essa condição de também sermos risíveis, porque nós somos frágeis. Nós seres humanos, nós somos frágeis, nós somos patéticos muitas vezes. Mas nós temos que compreender tudo isso. Há uma crítica que também tem uma função mesmo dentro de toda uma estrutura social. Eu acho que é uma maneira de você se posicionar criticamente e, enfim, eticamente sempre. Eticamente como uma postura de vida e que deve isso, sim, ser um compromisso e que se perceba isso na minha escrita. 

Professora, seus livros trazem o protagonismo feminino e são repletos de Marias. Você traz algumas verdades: o “fazer coisas de mulher”, as obrigações, as expulsões, as dores, as alcunhas que algumas carregam, a submissão, agressões, traições. Quem são essas Marias? Que força elas carregam?

Essas Marias, elas me dizem muito, porque eu sou uma Maria, inclusive você deve ter se inspirado aí na pergunta, no título de um dos meus romances, que é Papéis de Maria Dias. Essas Marias, para mim, não são apenas tema não, é a minha experiência de mundo, a minha experiência de vida, uma observadora mulher de uma geração. Veja bem, eu nasci em 1964, esse ano estou comemorando 60 anos, então é uma geração que passou pela repressão, mas eu tive também a felicidade de ver também o nascimento de várias coisas novas nessa sociedade. Eu posso dizer que gerações anteriores, como dos meus pais e dos meus avós, eles passavam por submissões que eram muito dolorosas. E eu vi na minha geração, na minha adolescência, a liberação de muitos movimentos novos. Então, para essas pessoas todas, não só mulheres, naturalmente, mas para todas essas pessoas, eu acho que a literatura, e me alimento muito disso, é uma maneira de afirmação de todas essas coisas novas que foram chegando e que vão chegando continuamente. Então, o meu compromisso é falar diretamente sobre todas essas marias, mas também sobre esses mundos que não são exclusivamente femininos, não são apenas femininos. Gosto muito de pensar nisso. Como é que nós somos responsáveis por essas grandes construções de novas mecânicas dentro de estruturas que ainda são tão doentias na nossa sociedade, tão em desequilíbrio, a nossa sociedade é uma sociedade tão violenta, tão injusta, enfim, nós temos muitos problemas. Mas a gente precisa entender que vamos resolvê-los todos juntos, numa grande teia. As nossas ações só podem começar com uma grande compreensão do que são esses nossos ideais. Então, escrever é um dos movimentos. Escrever sobre as coisas de mulher é escrever sobre as nossas essências, né? Todos nós, homens, mulheres, afinal. Essa força, a força que elas carregam, essas personagens, enfim, é a força de seres humanos numa sociedade que precisa ir se reestruturando continuamente, olhando. Olhando pros seus problemas e para as suas características, e não se esquecendo, jamais, a gente não pode conviver com o desequilíbrio em qualquer âmbito, em qualquer esfera. Então, não nos acomodemos, vamos sempre cutucar isso, deixar esse movimento acontecer. 

Luci, meu pedido agora é que você escolha um trecho de alguma de suas obras que tenha um significado especial pra você e conte pra gente o motivo desta escolha.

Então, por fim, eu vou ler um poema que se chama Inspiração e ele é do meu livro Olho Reavido. Eu fiz essa escolha porque esse poema, me parece, ele resume toda essa, não só a nossa conversa, mas essa essência dos temas todos que foram trazidos aqui e a própria razão de ser dessas festividades literárias, quando a gente reafirma a nossa relação com a literatura.

Inspiração.

Não importa se eu tomo banhos longos, se eu durmo com vampiro, se eu coleciono zelos, se suspiro.

Pouco importa como saí na foto da capa, se o tiro saiu pela culatra, se eu rasgo dinheiro, se não rimo.

Que importância tenho, que prefiro, se chamam-me poeta ou poetisa, se derrubei molho na blusa, se a crítica condena antonomásia, se não sei fazer baliza.

Cada virar de uma página abone, avive, alforrie a suficiência dessa lida.

É assim que se respira.

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