O Sesc Paraná conversou com a escritora, tradutora e professora Luci Collin, que compartilhou algumas das suas Leituras Afetivas, obras que ajudaram a moldá-la como leitora e como escritora.
Luci é dona de uma obra extensa, que passeia, de forma inventiva e muito original, por muitos gêneros da literatura.
Leia abaixo as cinco indicações literárias de Luci Collin
Emocionante esse exercício de apontar as leituras afetivas. Como, pela memória, se pode reconstruir boas partes da nossa vida pelo impacto da leitura que fazíamos em determinado momento! Minha lista é enorme, claro, como a de todos os apaixonados pela leitura, então, cinco apenas é escolha árdua; ficarão de fora todos os do Jorge Amado, Machado, Clarice, CDA, Lygia Fagundes Telles, Fernando Sabino, Cecília Meireles que li na biblioteca do colégio (sim, matando aulas de matemática, acobertada pela bibliotecária Carmen), mas vamos a eles.
Édipo Rei – Sófocles, da Coleção Teatro Vivo (Abril Cultural)
Que magia a dessa edição em capa dura e letras douradas compradas na banquinha da Dona Dadá (na Rua Trajano Reis). Ano de 1976, eu do alto dos meus 12 anos fiquei em êxtase quando li essa magnífica tragédia da Antiguidade Clássica – as condenações que Édipo sofre, a profecia, o recurso da morte, as revelações, a esfinge, que trama pungente. Ainda tenho esse livro (único volume que, na época, consegui comprar da coleção de 36). Um dia, visitando o oráculo de Delfos, veio-me a frase que me acompanhara desde sempre: “Ai de mim! Tudo está claro! Ó luz, que eu te veja pela derradeira vez!”
Um Estudo em Vermelho – Sir Arthur Conan Doyle
Primeiro livro em que aparece o detetive Sherlock Holmes. Meu pai tinha a coleção completa em capa dura, que relíamos, eu e meu irmão mais velho, nas férias de julho na Curitiba friíssima dos idos de 1975 (ano da geada negra no Paraná). Nesse livro, publicado em 1887, Sherlock encontra o amigo Dr. Watson (que narra as histórias) e, a pedido da Scotland Yard, resolve o caso complicadíssimo de um homem encontrado morto que não apresenta nenhum ferimento mas tem sangue ao seu redor. Tinha uma personagem importante, “a flor de Utah”, que se chamava Lucy Ferrier (me identificava com o nome em versão norteamericana). As brilhantes deduções do detetive, a partir da atenção a minúcias reveladoras, a descrição da vida dos Mórmons nos EUA, os motivos para o crime e, por fim, a captura do assassino, tudo fascinante.
Malagueta, Perus e Bacanaço – João Antônio
Nessa edição do Círculo do Livro, que minha avó Lucy assinava (cada mês um dos netos podia escolher um livro). Os três personagens do título se encontram num bar, num salão de sinuca e narram suas aventuras de malandragem por bairros de São Paulo, como Barra Funda, Pinheiros, Lapa. É um livro de contos, ou um conto bem longo dividido em várias partes, com uma linguagem impressionante, muito direta, que apresenta os tipos mantendo uma coloquialidade, uma oralidade incríveis. Eu gamei tanto nesse livro que, com muita cara-de-pau, escrevi pro autor. Ele respondeu! Trocamos algumas cartinhas. Ele me estimulou muito a seguir escrevendo, apesar das dificuldades do ofício. Pode ter maior bonitude de espírito do que um escritor consagrado responder a uma adolescente sonhadora da quase invisível Curitiba? Esse era o grande João Antônio.
A Obra em Negro – Marguerite Yourcenar
Um romance histórico sobre liberdade, que releio sempre. Embora a Yourcenar tenha lançado seus livros nas décadas de 1950 e 1960, a “febre” por sua literatura aqui no Brasil só se deu nos anos 80. Era lá por 1982, eu cursava o Superior de Piano na Escola de Belas Artes e me achava a maior intelectual do meu quarto. Por recomendação do Dr. Francisco de Paula Soares, que era meu oftalmologista, homem cultíssimo e leitor excepcional, em 1981 eu havia lido o Memórias de Adriano, grande sucesso da autora e então cheguei ao A obra em negro, cujo título vem da alquimia. Esse livro instigante traz um personagem inesquecível, Zenão, filósofo e médico, humanista no Renascimento. É belíssima sua trajetória contra a ignorância da época, seu gênio incisivo que se opõe às limitações da Inquisição; símbolo do espírito iluminado, a exemplo de Giordano Bruno, Copérnico e outros, ele é incompreendido, perseguido e injustamente condenado. Yourcenar devia ser mais lida hoje.
Invenção de Orfeu – Jorge de Lima
Revolucionário pra mim. Era 1982, em visita à generosíssima poeta Dona Helena Kolody, ela me perguntou se eu conhecia esse livro. Não. Ela ligou para seu amigo Erasmo Pilotto, grande educador e intelectual, e lhe disse: “A Luci tem que ler essa obra.” Fui à casa do prof. Pilotto – cuja biblioteca, com dois andares, devia ter mais de 10 mil livros – e tive a impressão de que estava no Paraíso (e estava). Ele tinha vários exemplares da obra e me doou um. Invenção de Orfeu é um dos grandes monumentos da poesia brasileira, suas imagens, sua relação com o mito, a musicalidade tudo no livro é grandioso. Já perdi a conta das vezes que o li. Por muitos anos, Jorge de Lima foi penalizado por ser um “escritor católico”, até que teve seu o poema “O grande Circo Místico” (roteiro de Naum Alves de Souza; trilha sonora de Chico Buarque e Edu Lobo, para tudo né, gente!) para o espetáculo homônimo do Balé Teatro Guaíra, ao qual assisti incontáveis vezes e é um ícone da minha geração. Quem puder, volte à obra de Jorge de Lima para saboreá-la com dedicação.
Sobre Luci Collin
Luci Collin, curitibana, é ficcionista, poeta e tradutora. Tem mais de 20 livros publicados entre os quais Querer falar (Finalista do Prêmio Oceanos 2015), A palavra algo (Prêmio Jabuti 2017) e Rosa que está (poesia, 2019). Participou de diversas antologias nacionais e internacionais (nos EUA, Alemanha, França, Bélgica, Uruguai, Argentina, Peru e México). Graduada no Curso Superior de Piano, no Curso de Letras e no Curso Superior de Percussão Clássica, na USP concluiu o Doutorado em Estudos Linguísticos e Literários em Inglês, e dois estágios pós-doutorais em Tradução de Literatura Irlandesa. De 1999 a 2019 lecionou Literaturas de Língua Inglesa e Tradução Literária na UFPR. Ocupa a Cadeira 32 na Academia Paranaense de Letras.