Como parte do projeto Leituras Afetivas, o Sesc Paraná conversou com o escritor João Lucas Dusi, uma das revelações de literatura paranaense dos últimos anos. Autor de O Grito da borboleta, Dusi escolheu cinco obras literárias que ajudaram a moldá-lo como leitor e como autor.
Leia abaixo as cinco indicações literárias de João Lucas Dusi
Grande sertão: veredas – João Guimarães Rosa
Que trabalho inacreditável de linguagem. Que habilidade no trato com o enredo e suas surpresas. E, principalmente, que sensibilidade para explorar o que há de mais bonito no ser humano – uma espécie tão cretina por excelência. São poucos os livros que me compensaram tanto quanto essa extensa travessia, publicada pelo escritor mineiro em 1956. É difícil não soar (e não se sentir) piegas após entrar no universo do Riobaldo, descobrindo com ele como a vontade de poder pode ser destruidora, envolvendo-se nos quebra-paus épicos dos jagunços, desafiando o Diabo e se apaixonando – junto do protagonista – pelos misteriosos olhos verdes, tão voláteis quanto um rio corrente, que amarram a trama. Viver é muito perigoso, às vezes chega a ser simplesmente repugnante, mas também pode ser uma baita experiência.
Ilíada – Homero
Demorei para encarar esse clássico. Por pura birra. O mesmo aconteceu com Hamlet e Dom Casmurro. Para pagar a língua, no embalo da fina ironia do destino, acabei lendo Ilíada para uma matéria do curso de Letras e a experiência foi sublime – oferecida pela deusa, afinal, que canta a cólera de Aquiles, o Pelida. É sabido que deuses gregos são sentimentais e guardam semelhanças com o que há de pior nos homens. O maior de seus guerreiros, Aquiles, não foge à regra. Após se desentender com Agamêmnom, ele se retira da batalha contra Troia e seus companheiros sofrem até o seu retorno triunfal – muito bem protegido por uma armadura forjada por Hefesto. Além das cenas brilhantes de luta, destacam-se os momentos mais ternos e repulsivos. Os extremos do nosso comportamento – do perdão diante de uma súplica honesta ao poder destrutivo do ego inflado – são perfeitamente retratados, e me restou a sensação de que o coração da espécie humana já tinha sido escrutinado séculos antes de Cristo.
Os Detetives selvagens – Roberto Bolaño
Para continuar falando de ritmo, ninguém melhor que esse escritor chileno. Mais de 600 páginas parecem um conto curto. Ulises Lima e Arturo Belano encabeçam um grupo literário chamado realismo visceral e resolvem investigar o sumiço de uma poeta da vanguarda mexicana, a Cesárea Tinajero. Esse trabalho detetivesco, no final, acaba sendo passado para o leitor, que deve ir resolvendo os enigmas à medida que dezenas de histórias são contadas. O pagamento pelo trabalho é uma experiência literária monumental, a construção de todo um universo violento mas terno, paradoxal mesmo, exatamente como a vida – e a América Latina. O show à parte, talvez a grande força da história, fica por conta dos diários de Juan García Madero – um rapaz de dezessete anos que sabe tudo e mais um pouco sobre a parte técnica da poesia. O que ele vai aprender, no entanto, ao longo da obra e ao lado de diversos personagens marcantes, com destaque para a querida Lupe, é transformar a própria existência num saco sem fundo de potência criativa, para muito além do que ensinam os trabalhos teóricos.
Graça infinita – David Foster Wallace
Mil cento e trinta e seis páginas e trezentas e oitenta e oito notas de rodapé. Mesmo assim, deve ser o livro do qual mais lembro detalhes. Demorou meses para finalizar a leitura, que foi feita num período de excessos. Apesar de todas as desgraças que permeiam a vida dos Incandenza e vários outros estudantes da Academia de Tênis Enfield, onde considerável parte da história se passa, terminei a leitura me sentindo renovado. Não sei se tem a ver com o romance em si, bastante triste, mas talvez com o fato de ter me deparado com tamanha maestria literária. Com novas possibilidades de criação e formas de explorar o humano na ficção – seus impulsos e vícios, principalmente, já que a sede de entretenimento contemporânea (e suas consequências potencialmente desastrosas) é parte crucial da obra. Alguns outros fatos curiosos são que os Estados Unidos e o Canadá se uniram para dar origem à ONAN (Organização das Nações da América do Norte), existe um grupo de cadeirantes assassinos perigosíssimo, um lixão radioativo onde vivem animais mutantes e a Estátua da Liberdade serve como stand de publicidade. O futuro no qual a narrativa se passa é incerto, mas perfeitamente atual.
O Arco-íris da gravidade – Thomas Pynchon
Dá para sentir a cabeça do autor norte-americano pifando a cada virada na história, a cada momento em que ele consegue unir a verborragia mais extenuante, muito chata, com uma pincelada singela de tirar o fôlego. Dá para sacar que ele usou tudo que tinha na manga, e essa demonstração – soberba – me arrebatou. Foi depois de ler esse romance que consegui fechar meu primeiro livro de contos. Assim como acontece em Graça infinita, o núcleo dramático é reduzido: a história é, bem grosso modo, sobre o tenente norte-americano Tyrone Slothrop e sua condição de ter ereções que antecipam a queda de foguetes supersônicos nazistas. A partir daí, conspirações envolvendo universidades e militares dominam o clima e se é enredado pelo o que Pynchon faz de melhor – elaborar incríveis quebra-cabeças e te jogar lá no meio, fazendo-o sentir-se tão perdido quanto os personagens da narrativa em suas diversas camadas, reais e oníricas, cheias de humor doentio e construídas com o mais invejável domínio da técnica literária (pausas e brechas, diálogos inusitados, situações as mais absurdas e personagens cativantes).
Sobre João Lucas Dusi
João Lucas Dusi é autor do livro de contos O Grito da borboleta (Penalux, 2019), redator dos jornais literários Cândido e Rascunho e criador da revista Madame Psicose. Vive em Curitiba (PR).