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Literatura em casa
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Leituras afetivas: cinco livros por Yuri Al’Hanati

Yuri Al’Hanati é um escritor singular: suas crônica transitam não apenas sobre os espaços da cidade, mas investiga também o subjetivo. Al’Hanati é convidado para compartilhar as suas leituras afetivas, os livros que ajudaram a moldá-lo como leitor e, claro, como escritor.

Leia abaixo as cinco indicações literárias de Yuri Al’Hanati

Grande sertão: veredas – Guimarães Rosa

Ler esse livro no original é uma das raríssimas vantagens de ser brasileiro. O português aqui pode ser, com muito esforço, do inteligível ao fluente, mas só é capaz de ser sentido pelo nativo. Nosso Fausto é uma aventura incrível e violenta. Já viu o final de Matrix, quando é revelado que a parede e as coisas são compostas por linhas de códigos de programação? As palavras de Rosa são como isso. Trabalham não tanto pelo efeito do real factível, mas pelo efeito do real sólido, do palpável. Rosa não escreveu uma história, desenhou um mapa com palavras que sempre existiram, mas nunca haviam sido escritas em lugar nenhum. Por esse mapa caminhamos lado a lado com o místico, o sujo, o reprimido e o silencioso do nosso faroeste brasileiro.

Meridiano de sangue – Cormac McCarthy

Ok, talvez eu tenha um fraco por faroestes. Meridiano de sangue é um mundo feio e solipsista. Sem deus, sem amor, sem ética, onde crueldades com cachorrinhos e nenéns são consideradas diversão. O Juiz Holden, um dos melhores personagens da literatura contemporânea escrita em inglês, é uma espécie de Wolf Larssen (o cruel capitão criado por Jack London em O Lobo do mar) do inferno. Filósofo telúrico e mau como um pica-pau, é pelo diabo em forma de gente a nossa educação em meio ao genocídio indígena do século 19 perpetrado por Joel Glanton e sua gangue. Poucas vezes vi alguém destrinchar tão bem a poética do mal quanto McCarthy.

Tarás Bulba – Nikolai Gógol

Antes de Dostoievski e Tolstói, foi Gógol quem me fez cair de amores pela literatura russa do século 19. Tarás Bulba, uma novela curta e aventuresca sobre a tacanhice da mentalidade provinciana, foi a responsável. Acima de tudo, acho que é uma novela sobre como uma mente atrasada e antiga pode arrastar todo mundo pro abate. O velho Tarás, cossaco que só conhece a luta, rompe um tratado de paz e acaba começando uma guerra contra os polacos só porque acha que os filhos voltaram muito afrescalhados dos estudos universitários. A tragédia já começa aí. Assim como Tolstói, Gógol também foi buscar a matéria de sua literatura no interior de seu país, e expôs todos os seus podres sem perder a ternura. Nos enxergamos em cada pequenez de seus personagens.

Moll Flanders – Daniel Defoe

Eu nunca esqueço de como esse livro me divertiu e de como várias vezes me peguei, ao longo da leitura, admirando a genialidade do autor, tanto para construir uma narrativa viciante quanto para driblar a censura moralista de sua época. Convenhamos: um livro do século 18 chamado “As venturas e desventuras da famosa Moll Flanders & Cia, que nasceu na prisão de Newgate, e ao longo de uma vida de contínuas peripécias, que durou três vintenas de anos, sem considerarmos sua infância, foi por doze anos prostituta, por doze anos ladra, casou-se cinco vezes (uma das quais com o próprio irmão), foi deportada por oito anos para a Virgínia e, enfim, enriqueceu, viveu honestamente e morreu como penitente” é um escândalo. Defoe, depois de narrar em primeira pessoa as aventuras de sua protagonista, colocava um comentário moralista do tipo “conto tudo isso para que você aprenda com meus erros e não entre nessa também, querido leitor”. Um truque simples, mas que funciona perfeitamente. Um livro cabeludíssimo vira uma fábula moral com meia dúzia de comentários desse tipo, o suficiente para passar pela censura. Defoe foi um mestre da narrativa e suas adjacências, ensinou a ser transgressor sem remar contra a maré.

O Senhor do lado esquerdo – Alberto Mussa

Lembro que estava no Rio de Janeiro para o reveillón quando comprei um exemplar de O Senhor do lado esquerdo na livraria Folha Seca, no Centro. Aquele enredo policialesco histórico, sobre um assassinato no início do século 20, que aos poucos vai se preenchendo de misticismo e sacanagem foi gradualmente colorindo as paredes dos lugares pelos quais passava. O Rio, enquanto capital do estado em que nasci, jamais teve qualquer tridimensionalidade pra mim, e de repente era esse lugar mágico, cosmopolita, cheio de história subterrânea e de mistério. A literatura do Alberto Mussa, o Jorge Luis Borges brasileiro, ressignificou um lugar que já conhecia, e nunca mais olhei o Rio com os mesmos olhos. A partir desse livro, devorei a literatura do autor e nunca mais terminei um livro dele com aquela sensação de “já chega”. E não é isso também que faz um livro ser bom?

Sobre Yuri Al’Hanati

Yuri Al’Hanati nasceu em 1986, em Praia Brava, distrito de Angra dos Reis (RJ), e reside em Curitiba desde 2004, onde estudou Comunicação Social e Filosofia na UFPR. Jornalista e cartunista, colaborou para diversos veículos impressos e online, e atualmente escreve crônicas semanais para o portal A Escotilha. Criou, em 2010, o Livrada!, plataforma multimídia que experimenta abordagens leves na crítica literária.