O escritor e jornalista José Castello é um dos nomes mais importantes no debate literário contemporâneo. Colunista de publicações como o Rascunho e do Suplemento Pernambuco, Castello é uma daquelas pessoas que vive a literatura em seu cotidiano.
Para celebrar essa relação, bela e íntima, o Sesc Paraná convidou José Castello para que compartilhasse os cinco livros que foram decisivos na sua formação.
Leia abaixo as cinco indicações literárias de José Castello
Robinson Crusoe – Daniel Defoe
Eu o li pela primeira vez aos oito anos de idade. Um dia, remexendo na pequena biblioteca de uma tia, Enyci, encontrei um velho exemplar da Organização Simões, uma pequena editora que existiu no Rio de Janeiro. Não tive coragem de pedir emprestado – minha tia não costumava emprestar livros, era ciumenta. Sim, eu o roubei – e não me arrependo, nem me envergonho disso. Ao contrário: ler Robinson Crusoe foi uma experiência fundamental em minha formação. Não só de leitor, mas de homem. Fui um menino muito solitário, muito tímido, que me julgava incompreendido. Logo me espelhei na história daquele homem, sozinho em uma ilha deserta, sem poder contar com a ajuda de ninguém, obrigado a sobreviver a partir do zero. Robinson “era” eu. Devorei o livro. Assim que terminei, eu o reli mais duas ou três vezes seguidas. Não conseguia larga-lo. O livro de Defoe me iluminou. Até hoje eu o releio. Agora mesmo, estou fazendo isso de novo. Até hoje sinto que “sou” Robinson Crusoe.
A Metamorfose – Franz Kafka
Eu o li pela primeira vez aos 13 anos de idade. Comprei-o por acaso, no escuro, em uma papelaria da Avenida Copacabana, no Rio de Janeiro. Naquela época, eu não conhecia as livrarias. Nas grandes papelarias de Copacabana, havia sempre uma pequena seção de livros nos fundos da loja, e eu as frequentava. Às cegas. Escolhia os livros, em geral, pela capa, ou pelo título. A história de Gregor Samsa, que amanhece transformado em um inseto, me provocou grande impacto. De novo, eu me vi dentro do livro. Eu era aquele inseto, desprezado, incompreendido, repulsivo. Eu vivia o mesmo drama que Samsa, pensei. É também um livro que nunca parei de reler. Aliás, toda a obra do Kafka é muito importante em minha vida.
A Peste – Albert Camus
Um pouco depois de ler A Metamorfose, em torno talvez dos 14 anos de idade, li A Peste, de Camus. Mais um livro que comprei por acaso, dessa vez em uma pequena livraria da Aliança Francesa, onde eu estudava. Sim, pela primeira vez li o original em francês – e, naturalmente, fiz isso com imensas dificuldades. Ainda assim, o livro me atordoou. Ali entendi que a vida está sempre por um fio, que somos frágeis e pequenos, e que a morte nos espreita. Ali entendi também o que é o horror. Agora mesmo, em plena pandemia do Covid, estou relendo, mais uma vez, A Peste. Agora em um grupo de leitura e debates, o “Extremos”, que faço em parceria com minha amiga Hena Lemgruber, uma psicanalista do Rio. Dessa vez vemos, é claro, lemos pelo zoom. Mas o impacto não é menor. Pelo contrário: em contraste com a pandemia do Covid, o livro se engrandece e nos perturba mais ainda. Também estamos vivendo uma peste. Também estamos desorientados, abandonados e sem nenhuma perspectiva do futuro. A literatura, mais uma vez, me ajuda a suportar e a pensar a realidade.
A Paixão segundo GH – Clarice Lispector
Li pela primeira vez “GH” aos 18 anos. Mais uma vez, eu o roubei – dessa vez, da biblioteca de minha falecida irmã, Sandra. Eu recebia só uma pequena mesada de meu pai. Eu a gastava toda em livros. Não sobrava nada. Meu pai dizia: “Pare de comprar tantos livros. Vá ao cinema, vá lanchar com os amigos, divirta-se um pouco”. Mas eu não tinha amigos e nem queria me divertir. Só a leitura me consolava. Até hoje guardo este exemplar de GH, com a capa cor de rosa, da Editora do Autor. Primeira edição, de 1964. Eram exemplares numerados. O meu é o número 240. Comecei a lê-lo cheio de suspeitas. A capa cor de rosa parecia indicar uma “literatura para moças” – cheio de preconceitos, eu imaginei. Mas, ao mesmo tempo, cada palavra do livro me arrebatava. Naquela época, eu frequentava sempre o Jardim Botânico do Rio de Janeiro, onde costumava passar as tardes sozinho, caminhando e lendo. Foi ali, no Botânico, que li quase todo o romance de Clarice. Quando terminei de ler, caí doente. Meus pais estavam viajando e minha avó Iracema tratou de mim. Eu tinha uma febre alta que não passava e um cansaço devastador. Um médico foi chamado. Depois de me examinar, na minha frente, ele disse a minha avó: “A senhora não se preocupe, não. Isso é só uma paixonite”. Esse médico, Dr. Wangler, “leu” A Paixão segundo GH em meu corpo! Logo que melhorei, reli o livro muitas vezes. Estou sempre a estuda-lo e a relê-lo. E ele nunca termina.
Carta ao pai – Franz Kafka
Mais uma vez, Kafka. No ano de 1973, aos 22 anos de idade, eu tinha uma relação muito difícil com meu pai, José Ribamar. Por acaso, na mesma papelaria de Copacabana, encontrei um exemplar da Carta ao pai, de Kafka. A edição da Hemus traz uma forte capa preta, assinada por Jayme Cortez. Li a carta de Kafka. Ele a escreveu por mim, a escreveu em meu nome, pensei. Tinha imensas dificuldades em dialogar com meu pai. Éramos dois turrões. Achei, então, que poderia lhe dar o livro de presente. Seria uma maneira de Kafka falar por mim. Fiz isso no Dia dos Pais de 1973. Meu pai faleceu em 1982. Ajudei minha mãe a desmontar sua biblioteca, que era muito pequena, mas não encontrei o livro de Kafka. “Talvez nem o tenha lido”, imaginei. “Talvez tenha emprestado, ou perdido”. Mais de 30 anos depois, já vivendo em Curitiba, recebo um telefonema de meu amigo, o escritor Rubens Figueiredo. Ele estava no Sebo Beringela, no centro do Rio, onde encontrara um exemplar da “Carta ao pai. Ao ler a dedicatória, reconhecera minha letra. “Para o papai com um beijo e o amor do filho José”, está escrito. “Dia dos Pais 73”. E só. Tomei um choque. Era o mesmo livro que, mais de três décadas depois, reaparecia. Rubens o comprou e o despachou pelo correio. Agora mesmo eu o tenho aqui a meu lado. O livro estava intacto, “virgem”, sem nenhuma indicação de que meu pai o tivesse lido. Tendo a achar mesmo que ele nunca o leu. Meu pai lia muito pouco, quase nada. Só lia jornais, era jornalista. Fiquei com esse livro diante de mim. Pensando: “Isso não pode ter acontecido por acaso. Isso quer dizer alguma coisa. Preciso fazer alguma coisa disso”. Até que um dia me veio a ideia: de um livro só posso tirar outro livro. A partir daí, a partir desse reencontro, escrevi meu romance Ribamar, de 2010 (Bertrand Brasil). Nele, Kafka e meu pai são personagens centrais.
Sobre José Castello
José Castello, 1951, carioca radicado em Curitiba, é escritor, crítico literário e jornalista. Mestre em Comunicação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. É colunista do mensário “Rascunho”, de Curitiba, e do suplemento “Pernambuco”, do Recife. É também colaborador regular dos suplementos “EU&”, do jornal “Valor Econômico”, e “Aliás”, do jornal “O Estado de S. Paulo”.
Foi colunista semanal do suplemento “Prosa & Verso”, de O Globo. Foi, ainda, cronista semanal do “Caderno 2” de O Estado de S. Paulo. Foi, também, editor do “Idéias/Livros” e do “Idéias/Ensaios”, ambos do Jornal do Brasil, suplementos literários que mereceram o prêmio anual da Associação Paulista dos Críticos de Arte (1990) e o prêmio “Estácio de Sá”, do governo do estado do Rio de Janeiro (1991).
Desde o ano de 2002, ministra oficinas literárias em todo o país. Desde de 2010, na Estação das Letras, no Rio de Janeiro, coordena o “Estúdio do Conto”, trabalho regular de formação de contistas, que já resultou em duas antologias de inéditos (Oito e Meio). Com a psicanalista Maria Hena Lemgruber realiza, no Rio de Janeiro, o projeto “Extremos: círculo de leituras radicais”, criado em parceria com Flávio Stein e que já está em sua oitava edição. No Itaú Cultural, coordenou durante quatro anos o projeto “Rumos: Jornalismo Cultural”, criado por Claudiney Ferreira.
É autor, entre outros, de Ribamar (Bertrand Brasil, 2010, prêmio Jabuti de “romance do ano” em 2011 e finalista do Prêmio Portugal Telecom no mesmo ano). De Inventário das sombras (Record, 1999). De A literatura na poltrona (Record, 2004). De Vinicius de Moraes: o poeta da paixão (Companhia das Letras, 1994, prêmio Jabuti de “ensaio do ano” em 1995). De Fantasma (romance, Record, 2001, “menção honrosa” do Prêmio Casa de las Américas, de Havana, 2002). E de Dentro de mim ninguém entra (Berlendis, 2016, assinado em parceria com o artista Bispo do Rosário, autor das “ilustrações”).
Organizou e prefaciou para a editora Rocco a coletânea Clarice na cabeceira/ Romances (2011). Organizou, ainda, o Livro de Letras, de Vinicius de Moraes (Companhia das Letras, 1991) e o inédito de Vinicius, Roteiro lírico e sentimental do Rio de Janeiro (Companhia das Letras, 1992).
Foi membro efetivo do júri internacional do Prêmio Leya, de Lisboa. Participou, em várias edições, do Júri Final dos prêmios Portugal Telecom e Oceanos, ambos de São Paulo. Em parceria com Selma Caetano, é autor de O Livro das palavras (Leya, 2013), reunião de ensaios literários e entrevistas lançado nas comemorações dos 10 anos do prêmio Portugal Telecom. Dá palestras, conferências e seminários em todo o país.