O Sesc Paraná conversou com a escritora e imortal da Academia Paranaense de Letras Etel Frota para que compartilhasse as cinco leituras que ajudaram a moldá-la como leitora e como autora.
Leia abaixo as cinco indicações literárias de Etel Frota
Não se pede a alguém da minha idade que escolha cinco livros. É injusto e desumano, passível de enquadramento no Estatuto do Idoso. Isto posto, passo à tergiversação com a qual pretendo fingir que me desincumbo da tarefa impossível.
Meu pai Candinho (1918-2012), semiletrado no currículo, pós-doutor funcional em Letras da Vida Real, nefelibata e pobre, encheu de livros a nossa casa, às custas de algum feijão a menos e muito suor a mais para honrar as prestações mensais dos carnês emitidos pelo vendedor de enciclopédias, o cara que batia à porta das casas do interior, oferecendo livros. Para fazer o investimento render, me presenteava com um volume -que, despudoradamente, ele mesmo autografava- a cada data comemorativa. Ainda hoje convivo, em bases diárias, com os dez volumes da Enciclopédia Trópicos, os dezesseis da coleção Alvorada da Vida, um deles com uma dedicatória de 1958 e, muito principalmente, com os dezoito do
Tesouro da Juventude – Vários autores
Ah, o Tesouro da Juventude... Obra “organizada de tal maneira, que o jovem começa a ler um assunto ocasionalmente interessante, e é quase certo encontrar outros que lhe despertem uma atração idêntica e que, sòzinho [sic], nunca teria pensado em procurar”. Bingo.
Não conheço quem tenha passado incólume pelo Tesouro da Juventude. A folha de guarda de cada volume trazia uma ilustração onde uma porção de água separava as terras de cá, com tigres ferozes e um homem erguido aos ares pela tromba de um elefante, das terra da outra margem, onde resplandeciam ícones da obra humana: moinho de vento, torre do Parlamento Britânico, Estátua da Liberdade, trem, mesquita, templo oriental, lado a lado com choupana, esfinge egípcia, esculturas primitivas. Singrando as águas, embarcações de todos os feitios. A cena toda sobrevoada por um avião de um lado e um foguete espacial do outro. No canto inferior direito, em primeiro plano, uma menina e um menino de costas, sentados e abraçados, pairavam em um tapete voador, observando a cena. Sonhei tardes e mais tardes a bordo desse tapete.
Havia o Livro de Nossa Vida, onde se ensinava o que era a memória e o que eram os glóbulos brancos do sangue, o Livro da Poesia, que tinha Fernando Pessoa, Fábulas de La Fontaine, Walt Whitman e Álvares de Azevedo, o Livro do Velho Mundo, com o continente negro e a grandeza e decadência da Pérsia, e ainda os livros “das Belas Artes”, “dos Porquês”, “das Coisas que Podemos Fazer”, “das Lições Atraentes”, entre dezenas de outros. Assim sendo, meu primeiro livro favorito da vida soma dezoito.
Os muito mariekondizados que me perdoem, mas ter ainda hoje livros amarelados que arrastei pela vida a fora -alguns roídos de traça- ao alcance da mão, do coração e da rinite me enche a velhice de significados e inspiração. Ainda guardo, também, meu exemplar original de
O Cortiço – Aluísio Azevedo
que devo ter lido nos primeiros anos do ‘ginásio’ e, entre todos os livros que a escola me recomendou ao longo da vida, foi o único que me permaneceu indelével na memória, em forma de susto e compaixão pelo destino de Bertoleza, que “antes que alguém conseguisse alcançá-la, já de um só golpe certeiro e fundo rasgara o ventre de lado a lado”, com o mesmo facão com que, ainda há pouco, escamava o peixe para o jantar de seu homem, João Romão, que pelos trinta dinheiros da ascensão social a traíra.
Depois a UEL, anos de chumbo, movimento estudantil, o grupo Poeira, me trouxe a poesia militante de Thiago de Mello que nos convocava à resistência. Faz escuro mas eu canto (1966) e, principalmente Poesia comprometida com a minha e a tua vida (1975), em que “a hora é a do boi da cara preta/ que eu seja capaz dela, puta merda”. Um quarto de século depois, Thiago viria a escrever o prefácio para o meu primeiro livro. Para entrevistá-lo, chega um dia à minha casa o jornalista José Castello. Eu não podia supor que estava conhecendo o autor de um dos livros que verdadeiramente posso chamar de livro de cabeceira, aqueles que vão ficando destronchados pelo manuseio, o
Inventário das Sombras – José Castello
É uma espécie de bíblia da jornalista que eu queria ter sido. Castello retoma quinze entrevistas que realizou, ao longo de duas décadas como repórter literário. Sua narrativa rasga, no entanto, o véu da impessoalidade jornalística e traz o foco para o seu próprio sentimento na relação com os entrevistados, em uma construção magistral. Foi nesse livro que conheci a intimidade da cela, da obra e do olhar de Arthur Bispo do Rosário, a matéria prima a partir da qual viria a escrever, muito tempo depois, a letra para a canção “Sete Arcanjos”.Ainda nessa interface jornalismo/ literatura tenho que mencionar Carlos Heitor Cony, talvez o autor de quem mais tenha lido livros, e os dois títulos que me ficaram indeléveis. Na cabeça, Pessach, a travessia (1997); no baixo ventre, O Ventre (1958) e no coração, Quase Memória Quase-romance (1995)Ampliando esses territórios de intersecção, Paulo Leminski, o da poesia magistralmente matadora, que eu amo, me capturou sobretudo com
Vida – Paulo Leminski
Improvável coletânea de biografias. Nunca mais fui a mesma, depois dessa leitura. Funcionou para mim como Franz Kafka para García Márquez, que ao ler o primeiro parágrafo de A Metamorfose (1915), disse com seus botões “com que então, um escritor pode fazer isto?!” Com que então, um escritor pode juntar Cruz e Sousa, Bashô, Jesus e Trótski no tempo e no espaço?!A propósito, como falar de Gabo, numa seleção de leituras preferidas da vida, sem mencionar Cem anos de solidão (1967)? O Amor nos tempos do cólera (1985), releitura obrigatória em tempos de pandemia? Ou, ainda, como falar de literatura latino-americana, sem lembrar de Vargas Llosa e A Guerra do fim do mundo (1981), a primeira vez em que cruzei meu caminho de leitora com a história reescrita como ficção?Chega o dia em que caio fulminada com os Poemas de Eugénio de Andrade (1999). “Como se não houvera/ bosque mais secreto/ como se as nascentes/ fossem só ardor,/ como se o teu corpo/ fora a vida toda–/ o desejo hesita/ em ser espada ou flor.” Com que então, um poeta pode fazer isto?!Leituras afetivas e suas rememórias parecem sugerir eventos antigos e formadores, cristalizados em uma zona segura do passado.
Vivendo minha sétima década, tendendo a supor uma certa imunidade a revolteios mais radicais pela palavra, eis que me chega, outro dia, a neozelandesa Janet Frame (1924-2004), praticamente inédita em português, com sua obra inteira na qual apenas me inicio. Muito principalmente seu
Intensive care – Janet Frame
E lá vou eu, de novo virada do avesso, embrenhando-me em mais uma floresta desconhecida e fascinante. Milly é uma mulher-menina, portadora de uma síndrome que a mantém prisioneira de um corpo infantil e retardo mental, que fala de sua adolescência como uma-essência-de-boneca (a-doll-essence). As notícias através das quais se vai desenhando o quadro da tragédia que se abaterá sobre ela e todas as millies, pessoas não-normais (a-nor-mill) chegam através da visão-que-conta (telly-vision) Talvez Janet Frame assinasse junto O Livro das ignorãças de Manoel de Barros (1916-2014), “…descobri aos 13 anos que o que me dava prazer nas leituras não era a beleza das frases, mas a doença delas.”
Eu assinaria, certamente, desde o tesouro da minha juventude.
E segue o baile, rumo às descobertas dos próximos setent’anos.
Eu avisei. Não se pede a alguém da minha idade que escolha cinco livros.
Sobre Etel Frota
Nasceu em Cornélio Procópio, norte do Paraná. Foi professora, bancária, médica; desde 1998 apresenta-se como escritora. Letrista, parceira de relevantes artistas da MPB. Arriscou-se na dramaturgia, escreveu roteiros para espetáculos musicais. Publicou Artigo oitavo – poesia escrita, falada e cantada (2002, poesia, independente); Lyricas, a construção da canção (2007, songbook, independente); O Herói Provisório (2017, romance, Travessa dos Editores); Flor de Dor – o Tao do Trio canta Etel Frota (2016, música, Gramofone); Mahadevi, A Árvore da Vida (2018, Kotter, em parceria com a fotógrafa Dani Leela). No prelo, Identidades e Diversidades (um mergulho literário na fotografia documental de Rubens Guelman). Em parceria com o jornalista Alan Romero, escreve, produz e apresenta, na Paraná Educativa FM, o programa semanal Poemoda, a canção em verso e prosa’. É membro da Academia Paranaense de Letras.