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Literatura em casa
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Leituras afetivas: cinco livros por Carlos Henrique Schroeder

A literatura do escritor catarinense Carlos Henrique Schroeder é um exercício deliberado de investigação do mundo e do outro. Capaz de descrever as idiossincrasias da existência humana em romances longos ou contos curtíssimos, o autor dividiu com o Sesc Paraná as cinco obras literárias que foram fundamentais na sua formação como leitor e como produtor de literatura.

Leia abaixo as cinco indicações literárias de Carlos Henrique Schroeder

A Metamorfose/O Processo/O Castelo – Franz Kafka

Ninguém me falou de Franz Kafka (1883-1924), eu não li sobre ele em uma revista ou alguém me entregou nas mãos e disse: “leia isso, cara, agora”. Eu descobri sozinho, de joelhos, numa prateleira periférica de uma biblioteca pública. Na minha juventude não existia internet, só angústia. E estavam lá A Metamorfose, O Processo e O Castelo. Os títulos insólitos e diferentes nas lombadas e as capas sombrias desafiaram o jovem leitor, que já foi devorando as páginas no retorno sacolejante do ônibus. E como se vive depois de Kafka? Ele te conecta com outro mundo, contemporâneo (“contemporâneo é aquele que mantém fixo o olhar no seu tempo, para nele perceber não as luzes, mas o escuro”. Agamben, Giorgio), de verdade. E você quer, cada vez mais, repetir essa experiência de escuridão, e vai lendo coisas cada vez mais desafiadoras, e entra num caminho sem volta. Kafka escreveu sempre o mesmo livro, a vida inteira. O absurdo da vida em histórias absurdas. Eu realmente fiquei espantado com o universo kafkiano, e acredito que nenhuma obra cultural ou mesmo acontecimentos de minha vida tenham feito tanto barulho quanto esses três livros na cachola schroediana. Você sai da experiência kafkiana transformado, com a porta aberta dos seus instintos mais sombrios, como leitor, como ser caminhante. E você se atreve a escrever.

Narrativa completa – Felisberto Hernandéz

Sou um leitor tardio deste vanguardista da bacia do Rio da Prata, o uruguaio Felisberto Hernandéz (1902-1964). Já tinha mais de trinta anos quando li As Hortênsias: foi um vendedor de livros de uma obscura livraria da Avenida Corrientes (Buenos Aires) que me entregou o exemplar, e com um olhar desconfiado, que expressava algo assim: “Como assim você não leu o Hernandéz?”.

Em 2015 saiu o Narrativas completas, que facilitou minha vida de leitor e pude substituir minhas edições capengas por suas obras completas, compostas por contos, novelas, minúsculas peças de teatro e esboços de contos. Mergulhar na obra de Hernández é uma experiência dentro da própria experiência: são ficções estranhas e extraordinárias, com uma dicção muito peculiar e sonoridades estalantes. Em algumas narrativas, memórias de infância se abrem para outras memórias, e para outras e outras pessoas, num espelho miracular. É um chicote na literatura do cotidiano, que impera na contemporaneidade, e nos traz, em perspectiva, a experiência vital de um narrador espiralado.

Pescoço ladeado por parafusos – Manoel Carlos Karam

Nasci a apenas vinte quilômetros da cidade onde nasceu o Manoel Carlos Karam, e passei a acompanhar sua obra quando venceu o Prêmio Cruz e Sousa, lá pela metade da década de 1990, com seu livro Cebola. Foi Karam quem me ensinou a palavra “possibilidade”. Sim, a possibilidade de convulsionar uma narrativa, a possibilidade de rir do leitor, de si mesmo, de tudo, e também um segredo: a literatura não tem margens, é um campo vasto e uma solidão compartilhada. Seus livros são engraçados, irônicos, originais, mas sobretudo, vivos. E Pescoço ladeado por parafusos é facilmente enquadrado em qualquer Top 10 de melhores livros nacionais: um brinde à invenção, um exemplo de literatura com um claro comprometimento: a criação. Este livro é a certificação de como Karam esteve a frente de toda uma geração, e que ele, sozinho, é um movimento literário. São minicontos, micronovelas e prosa em formatos que são difíceis de definir a não ser como “coisa do Karam”. Galgue as inúmeras armadilhas e risadas, pois depois deste livro seu pescoço não será mais o mesmo.

Limonov – Emmanuel Carrère

Maravilhoso como Carrère consegue biografar um personagem tão singular quanto Limonov (poeta punk, romancista, mendigo, mordomo de um bilionário e político russo) partindo de textos do próprio Limonov, mas com um olhar imparcial e traçando paralelos com sua própria vida. Uma ficção sobre a verdade ou uma verdade sobre a ficção? A única certeza é a do retrato desesperador da Rússia.

Ângulo de guinada – Ben Lerner

Uma poesia que olha para o hoje, mas parece ter vindo de algum lugar do futuro, e enquadra sem complacência as armadilhas linguísticas, geográficas e financeiras criadas a partir dos anos 2000. É o sujeito contemporâneo numa guerra (perdida) contra instituições que já esqueceram (economia de mercado, militarismo, religiões) seus próprios princípios, mas principalmente um embate contra o utilitarismo, que parece ter contaminado tudo, inclusive a arte. Uma poesia que se traveste de prosa e vice-versa, para mostrar o que é viver nesses tempos sombrios, onde a informação é uma arma de desinformação.

Sobre Carlos Henrique Schroeder

Carlos Henrique Schroeder é autor das coletâneas de contos As Certezas e as palavras (Editora da Casa, 2010), vencedora do Prêmio Clarice Lispector, da Fundação Biblioteca Nacional, e Aranhas (Record, 2020). Publicou também os romances As Fantasias eletivas (Record, 2014) e História da chuva (Record, 2015). Tem contos traduzidos para o alemão, espanhol e islandês.