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Paraná
Cultura: Museu do Café
Cultura: Museu do Café

1975: catástrofe e espetáculos da natureza

Há 50 anos, eventos climáticos extremos marcaram a história econômica e social do Paraná

Texto: Silvia Bocchese de Lima
Fotos: Acervo Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional, Biblioteca Pública do Paraná e Núcleo de Documentação e Pesquisa Histórica (NDPH) da Universidade Estadual de Londrina (UEL) e Museu Histórico de Londrina

O deslocamento de uma massa de ar frio que se originou na Argentina foi responsável, em julho de 1975, por eventos climáticos extremos em toda a Região Sul da América Latina. O Jornal do Brasil informou que em Buenos Aires nevou – fato que não ocorria desde 1918 –, em toda a Serra Gaúcha e Catarinense, também. Em Bariloche as temperaturas chegaram a -18ºC, em Montevidéu, a -5ºC e, em Guarapuava e Palmas, foram registradas temperaturas negativas recordes no Brasil: -10ºC e -11º.  O frio extremo promoveu espetáculos da natureza com a neve e catástrofes como mortes de pessoas em situação de vulnerabilidade, prejuízos significativos em plantações, impactos na economia, na fauna e na flora. 

O Sesc PR traz uma matéria rememorando os 50 anos dessa semana de 1975 que marcou a história paranaense. 

Geada Negra 

Choveu muito no Norte do Paraná nos dias 16 e 17 de julho. Em 48 horas o Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet) registrou em Londrina 85,6 mm de precipitação e, até então, a preocupação de grande parte dos cafeicultores era com o produto que se encontrava nos terreiros para secagem e estava sujeito à fermentação. As temperaturas relativamente amenas registradas no dia 16, com mínima de 11,9ºC tiveram queda acentuada com a chegada de uma massa de ar polar, alcançando 0,7ºC no dia seguinte. 

Nas primeiras horas da madrugada do dia 18, segundo a Folha de Londrina, “os termômetros registraram 2 graus abaixo de zero no centro da cidade e 3 nas baixadas, e já estava geando. Às 2 horas da manhã, quando encerrávamos os trabalhos da redação, a temperatura ainda continuava 2 graus, tudo indicando que estaríamos no limiar de um dia tristemente histórico para o Norte do Paraná: um dos dramáticos dias de cafezais esturricados pelo frio”, trazia a matéria de capa.  

O jornal estava certo. As temperaturas chegaram a -3,5ºC registradas em abrigo e, sobre a relva, a 5 cm do solo, a -9ºC. O solo estava encharcado e a baixa temperatura foi suficiente para causar o congelamento direto da seiva das plantas. A insolação de mais de dez horas acelerou o choque térmico dos tecidos das plantas já danificadas e ampliou os efeitos da geada negra – extremamente destrutiva.  

Folha de Londrina de 18 de julho de 1975 | Acervo Núcleo de Documentação e Pesquisa Histórica (NDPH) da Universidade Estadual de Londrina (UEL)

Este alinhamento de fatores climáticos foi responsável por uma das maiores tragédias climáticas no Norte do estado, que dizimou quase a totalidade dos cafezais plantados. Adolescente à época, a hoje cafeicultura de Santa Mariana, na região Norte Pioneiro, Cornélia Margot Gamerschlag recorda-se da manhã posterior à geada. “Eu não tinha noção da seriedade da situação, mas o que me vem à memória é do café geado, escuro, necrosado. Logo cedo, na madrugada, a primeira cena é de gelo branco e, conforme o sol batia, a visão tornava-se desoladora: uma lavoura inteira preta e, na sequência, um cheiro terrível de folha necrosando. Falo de cheiro de morte, de algo apodrecendo”, rememora Cornélia, enfatizando que ao longo do dia e da semana, pairava a falta de esperança de poder salvar um único pé de café.  

Derrubada dos pés de café após a geada | Acervo Museu Histórico de Londrina

Destaque nacional 

As manchetes dos principais jornais do estado e do país, traziam com destaque, durante a semana, os efeitos da geada nos cafezais e lavouras paranaenses. O Diário do Paraná foi taxativo quanto à erradicação dos cafezais no estado: “Geada acaba com café no Paraná” e detalhou os estragos provocados em diferentes regiões paranaenses. “A neve e as geadas que estão ocorrendo na região agrícola, sobre todo o estado, nos últimos dias, comprometeram, definitivamente, a safra cafeeira de 1976, prejudicaram quase a metade da produção tritícola, dizimaram uma parte considerável dos canaviais e, ao mesmo tempo, implantaram um clima de desolação e angústia entre os produtores paranaenses”.

O então governador Jayme Canet Junior em visita aos cafezais devastados pela geada negra | Acervo Arquivo Público do Paraná

A Folha de Londrina noticiou que “Não sobrou um único pé de café”, trazendo na capa afirmações como “a cafeicultura está de luto”, “nunca houve uma geada tão forte”, “o café está totalmente destruído, arrasado” e “quem sobrevoasse as lavouras poderia ver uma extensa mortalha cobrindo tudo”. O Jornal do Brasil alertou que “Geadas suspendem as exportações de café” e “No Paraná, previsões pessimistas”, com a “forte geada – considerada a mais grave dos últimos 20 anos e que afetou mais de 80% das lavouras de café, mutilando pelo menos, de 30 a 40% a produção de trigo da região”.  

A Imobiliária Avenida cedeu seu espaço publicitário na Folha de Londrina para enviar uma mensagem de otimismo aos paranaenses, naquela semana. “Desde o início do desbravamento deste riquíssimo norte paranaense houve geadas que a natureza nos trouxe. Agricultores, pecuaristas, industriais, comerciantes, homens de negócios e toda a população sentiram e sentem as consequências do fenômeno. Mas nem por isso deixamos de progredir e crescer. O Paraná é grande demais para fracassar”, dizia a nota. 

Impactos 

Nem o horto florestal da cidade foi poupado. Em comunicado emitido dias após a grande geada, a Prefeitura de Londrina enfatizou que só teria condições de fornecer mudas de árvores dentro de três anos, pois quase a totalidade do viveiro havia sido destruída. Na fazenda experimental da Sociedade de Economia Rural, também da prefeitura, foram perdidas 200 mil mudas de café, 30 mil de eucalipto e 13 alqueires de trigo foram totalmente queimados pela geada. No então Instituto Agronômico do Paraná (Iapar), hoje Instituto de Desenvolvimento Rural do Paraná (IDR), responsável pelo estudo e melhoramento genético do café e de outras culturas, foi possível proteger alguns experimentos de café, enterrando as mudas na véspera da geada. 

Em 1970, segundo dados do Departamento de Economia Rural (Deral) da Secretaria de Agricultura e do Abastecimento do Paraná (SEAB), o estado contava com 1,04 milhão de hectares de terra com pés de café plantados, colheu no ano seguinte, 768 mil toneladas do grão – algo em torno de 12,8 milhões de sacas de 60 kg – e respondeu por 49,5% da produção nacional. Um ano após a geada negra, a área plantada foi reduzida a 3,7 mil hectares no Paraná – ou seja, -99,64% –, e foram colhidas 231 toneladas de café, o que correspondeu a 0,06% da produção brasileira.  

Folha de Londrina de 23 de julho de 1975 | Acervo Núcleo de Documentação e Pesquisa Histórica (NDPH) da Universidade Estadual de Londrina (UEL)

Em setembro de 1975, os bancos Central e do Estado do Paraná asseguraram repasses na casa de um bilhão de cruzeiros para aplicações no Plano de Emergência para Recuperação de Cafezais Geados 75-76, mas os recursos não chegaram a todos. Além da destruição dos cafezais, a geada provocou o êxodo rural, subempregos e famílias ficaram sem terras. “Tínhamos um sítio de 15 alqueires, uma casa grande e, de um dia para o outro, meus pais, eu e meus dois irmãos fomos morar em um cômodo alugado de 3x3m. De pequenos agricultores, nos tornamos boias-frias. Só depois de um ano e meio, com meu pai trabalhando como servente de pedreiro, conseguiu vender algumas cabeças de boi e alguns poucos mantimentos que tinham sobrado no sítio e comprou um terreno na cidade de Cambé”, lembrou o técnico em Museologia do Museu Histórico de Londrina Padre Carlos Weiss, da Universidade Estadual de Londrina, Amauri Ramos Silva. 

Outro impacto significativo na economia, não apenas do Norte paranaense, mas de todo o estado, foi a tão necessária diversificação de culturas e o IAPAR, criado em 1972, teve um importante papel na pesquisa e no suporte técnico ao produtor agrícola. Os pesquisadores do instituto estudaram e desenvolveram cultivares adaptados ao clima do estado e que fossem, especialmente, resistentes ao frio.

O que o café representou 

O café foi considerado o ouro verde do terceiro planalto paranaense, responsável por um importante ciclo econômico no estado e foi o principal produto da economia do Paraná depois do ciclo da erva-mate, no início da década de 1940. 

Londrina tornou-se a capital mundial do café, chegou a sediar uma importante bolsa de cotação de café que auxiliava a determinar os preços do produto no Brasil e no exterior.  

Jornal Última Hora, de 12 de maio de 1962 | Acervo Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional

O auge da produção cafeeira foi concomitante com o modernismo na arquitetura e a cidade recebeu a construção de prédios icônicos financiados pela riqueza do grão, exemplo disso, a antiga Estação Rodoviária e o Cine Ouro Verde, obras do arquiteto João Batista Vilanova Artigas. Segundo Diego Antonelli, em Paraná uma História, a cidade chegou a ter o terceiro aeroporto mais movimentado do país e a riqueza do Norte Paranaense também marcou a era de ouro da música popular brasileira na capital. Em Curitiba no Tempo do Jazz Band, Adherbal Fortes de Sá Jr. defende que só há mecenato onde há dinheiro sobrando e que não há arte sem mecenas. Ele detalha que “a geada destruiu boa parte das lavouras e acabou com a monocultura cafeeira. O café foi erradicado, para a entrada da soja; com ele sumiram os reis da noite que bancavam a festa. Nunca mais piano, baixo e bateria no escurinho do Luigi´s”.  

Decadência do café e melhoramento genético 

O medo generalizado de que uma nova geada ocorresse foi responsável pela decadência da cafeicultura paranaense em números, pelo desenvolvimento da soja como produto agrícola de grande aceitação, além do trigo e da pecuária. As décadas seguintes viram o lento renascer da cafeicultura no Paraná, trazendo consigo também o conceito de cafés especiais. 

Com papel fundamental na história do café no Paraná e no Brasil, o pós-doutor em melhoramento genético e engenheiro agrônomo aposentado do IAPAR, Tumoru Sera, foi pioneiro em desenvolver técnicas de manejo e melhoramento genético voltados para a cultura cafeeira. Suas pesquisas ajudaram a desenvolver variedades mais resistentes às condições climáticas adversas, à ferrugem, a nematóides e à acidez do solo, possibilitando o cultivo do café em áreas antes inviáveis no Paraná e em outras regiões brasileiras. Com registro de 13 cultivares de cafés Arábicas compactas, com produtividade e qualidade, credita-se a ele e às suas pesquisas, o fortalecimento da competitividade do café brasileiro e o aumento da qualidade do grão, reconhecido no mundo todo.  

Cafés especiais | Crédito imagem: Ivo Lima

Enquanto isso… neve 

O mês de julho de 1975 ainda é lembrado com saudosismo na capital e em cidades das regiões Centro Sul e Sudoeste do estado como o da última grande nevasca que o Paraná presenciou. Segundo a classificação climática de Köppen-Geiger, o Paraná tem abaixo da linha do Trópico de Capricórnio duas variações: o Cfa, temperado com verões quentes; invernos amenos – aqui neve é rara e, quando ocorre se dá em áreas acima de mil metros de altitude –, e o Cfb, temperado com verões amenos e invernos mais frios que o Cfa – a neve é um pouco mais frequente, principalmente em regiões mais elevadas. Ou seja, nevar em Curitiba é um fenômeno raro e, naquele 17 de julho, houve a convergência de fatores que possibilitou esse espetáculo da natureza: aquela mesma massa polar de ar frio, que chegou ao Sul do Brasil, passou pela capital, combinada à baixa pressão atmosférica, umidade suficiente para a formação de nuvens e neve, temperaturas baixas em toda a atmosfera e ventos fracos. “(…) a neve também levou alegria ao Paraná: Curitiba praticamente parou para brincar com a neve, que depois de 47 anos, voltou a cair na cidade. A nevada começou às 5 e 30 e terminou às 12 e 30 e Curitiba passou a manhã fazendo bonecos de neve na calçada e nas ruas”, trazia a matéria de capa do Estado do Paraná, do dia 18 de julho.  

Neve em Curitiba | Reprodução de foto publicada na Gazeta do Povo, de 18 de julho 1975

Os jornais relataram que apesar dos estragos da geada, por onde havia neve, havia festa pelo estado: detentas tinham sido liberadas pelo Delegado de Costumes pois “elas também têm o direito de assistir à nevasca”; jornalistas e fotógrafos registraram o acontecimento em som e imagens desde as primeiras horas da manhã; o comércio estava movimentado para atender às novas e emergentes demandas dos clientes por filmes e máquinas fotográficas – segundo a Gazeta do Povo foram cem mil compradores de rolos de filmes e, “aproximadamente, um milhão de chapas batidas durante a nevada”. Também houve procura por roupas e agasalhos, aumento no consumo de bebidas quentes, destiladas e de feijoada. “Nos vários pontos da cidade, a bebida mais procurada tinha sempre uma base de álcool. Foi a primeira vez que o cafezinho ficou em segundo lugar na preferência popular”, contou à Gazeta do Povo o garçom de uma lanchonete, revelando que serviram “mais de quatro litros de conhaque, meia dúzia de litros de caipirinha, 12 garrafas de vinho, além de Whisky, Vodka e outros, apenas durante a manhã. O consumo durante algumas horas foi o equivalente a dois dias de vendas”. 

Diversos, divertidos e, alguns, assustadores bonecos de neve estavam espalhados por todo o Paraná; lojas de vinil tocavam músicas natalinas e pessoas nas ruas saudavam-se com “Feliz Natal!”; as linhas telefônicas ficaram congestionadas; o aeroporto Afonso Pena, em São José dos Pinhais, precisou ser interditado até o meio-dia e ainda houve inúmeros relatos de veículos que tiveram as mangueiras de radiadores estouradas, torneiras das residências congeladas e encanamentos também estouraram.  

O Jornal do Brasil trouxe a informação de que cinco homens em situação de rua não resistiram aos -5,1ºC de Curitiba, número atualizado pela Secretaria da Saúde e Assistência Social na semana seguinte: dez mortos. 

A neve também motivou a criação de concursos: a Gazeta do Povo iria selecionar e premiar as quatro melhores fotos e o Bamerindus Crédito Imobiliário desafiou os curitibanos a colocar no papel as lembranças da neve em forma de poema, crônica ou um relato e os quatro melhores seriam premiados com créditos em Caderneta de Poupança. 

Concurso de poesias promovido pelo Bamerindus | Acervo da Biblioteca Pública do Paraná

Mas a neve também trouxe problemas na Região Metropolitana. “Os produtos hortifrutigranjeiros foram totalmente destruídos pela neve, agravada a ação por ventos frios e intensa geada na madrugada de ontem”, trazia a Gazeta do Povo. Os preços dos produtos foram inflacionados e uma caixa de tomates vinda de São Paulo que custava na semana anterior 42 cruzeiros chegou a 100 cruzeiros no atacado. 

Além de Curitiba, também nevou em Guarapuava, onde a temperatura mínima registrada foi -10ºC. Palmas, considerada uma das cidades mais frias do Paraná, localizada na Região Sudoeste do Paraná, os termômetros marcaram -11ºC. Também nevou em União da Vitória e em Pato Branco, onde os bonecos de neve foram substituídos por patos de neve. 

Nestas cinco décadas, a cada inverno e chegada de massa de ar frio tem-se o receio de uma nova geada negra e a expectativa pela neve. 

Guardião da Memória 

Inaugurado em agosto de 2023, o Museu do Café está localizado no prédio anexo à unidade Sesc Londrina Cadeião. Com uma área de 1.014,62m2, o museu ocupa o antigo prédio da 10ª Subdivisão Policial – construído na década de 1960, auge da produção cafeeira paranaense.  

Museu do Café, em Londrina | Crédito imagem: Ivo Lima

Nos dois andares do edifício os visitantes conhecem a história cafeeira de forma versátil, moderna e dinâmica. Trata-se de um grande centro cultural com biblioteca, salas de cursos, espaços de convivência e artes, pensado para preservar a memória da cultura cafeeira e do patrimônio histórico, lugar de informações contemporâneas, exposições, eventos, experimentações e vivências. Além disso, há toda a estrutura da unidade do Sesc Londrina Cadeião e do Café-escola do Senac. 

O museu está localizado na Rua Sergipe, nº 52, e os horários de visitação são de terça a sexta-feira, das 9h às 21h, e aos sábados e domingos, das 9h às 18h. Para agendamentos de grupos e informações entrar em contato pelo telefone (43) 3572-7700.