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Paraná
Cultura: Semana Literária

Recortes da palestra de Itamar Vieira Junior, em Curitiba

O autor baiano Itamar Vieira Junior, sucesso de público e de crítica, participou de um bate-papo mediado pelos colaboradores do Sesc Paço da Liberdade, Raimundo Luiz dos Santos e Iamni Reche Bezerra, sobre Sociedade e Literatura.

Itamar é conhecido por obras que refletem suas raízes no Nordeste brasileiro e suas experiências de vida. Torto Arado é um dos livros mais vendidos no Brasil, foi finalista do Prêmio International Booker Prize, no Reino Unido; na França venceu o Montluc Rèsistance et Liberté, vencedor do Prêmio LeYa, do Jabuti e Oceanos.

Confira recortes das falas do escritor convidado, proferidas na noite de abertura (7), no auditório lotado Poty Lazzarotto, no Museu Oscar Niemeyer, em Curitiba. A palestra fez parte da programação da 43ª Semana Literária Sesc & Feira do Livro 2024.

Sobre as personagens dos seus livros

“De alguma maneira esses personagens refletem o meio onde eu cresci, onde eu vivo. Eu sempre busco respostas. A gente não entende muito bem o que nos move a escrever, e a contar determinadas histórias. Cresci num ambiente onde as mulheres estavam sujeitas a toda ordem de violência, e não só no ambiente familiar, mas também o mundo era hostil com elas, como ainda é, em alguma medida. Muita coisa mudou, mas as mulheres ainda sofrem. Acho que isso se fixou no meu imaginário como algo que precisava ser narrado, ser contado.”

Impacto da obra Torto Arado

“Essa história faz parte da minha vida, seja das memórias familiares, mas também daquilo que eu vivi enquanto servidor, viajando pelos campos da Bahia, do Maranhão. Eu não tinha uma editora para publicar, não sabia o que iria acontecer com essa história, mas eu tinha a convicção, a certeza que era a história que eu queria escrever. Nunca imaginei que o livro fosse conquistar tantos leitores, ganhar tantas traduções, que eu fosse viajar. Mudou minha vida radicalmente, hoje estou experimentando viver de literatura. Percebi que, de alguma maneira, essa história fala um pouco de todos nós. No nosso imaginário essa história é uma fração dessa história épica do que é a história brasileira. Acho que muitos têm em sua família uma Bibiana, uma Belonísia, que se não viveram em condições semelhantes, precisaram desbravar terrenos para poder sobreviver.”

Momento ímpar

“Nós vivemos num período em que queremos compreender a nossa história de uma maneira honesta, como nunca fizemos para o Brasil.  E pensar no nosso passado, no quanto o trauma colonial, escravista ainda domina o nosso cotidiano, nossa sociedade, parece que é a ordem da vez.”

Questões da terra

‘Na adolescência, o meu interesse pela literatura, que começa muito cedo, se acentua e comecei a ler as obras do ciclo do Nordeste – gosto de chamar assim o trabalho dos autores que escreveram sobre os problemas sociais do campo brasileiro. Passei a ler O Quinze, [de Rachel de Queiroz]; Vidas Secas e São Bernardo, de Graciliano Ramos e, Terras do Sem Fim, de Jorge Amado. Só mais tarde li Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, e  Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo e Neto. Todas essas obras me marcaram profundamente, porque de alguma maneira se comunicavam com essas memórias familiares, mas eram obras datadas, foram escritas há muitos anos. Se não me engano, Vidas Secas completará 90 anos de publicação em 2028, ou seja, muito tempo. Há 18 anos comecei a trabalhar no Incra, e quando cheguei ao campo fiquei perplexo, porque aquelas histórias narradas nos romances ainda eram muito vivas, estavam muito próximas. No campo o trauma colonial, o escravismo, ainda persiste em nossas vidas sem que a gente se dê conta e está de uma maneira muito patente, muito visível. Há um mundo em disputa e o campo é um lugar de grande desigualdade. É uma fração, um espaço central das nossas vidas porque todo país desenvolvido, todo país soberano, tem uma população alimentada e o nosso alimento vem desse campo que está em disputa. Nesse campo estão dispostos aqueles que realmente produzem a comida que chega à mesa, o pequeno e o médio agricultor, e que, muitas vezes, estão em risco. O grande agricultor tem um papel importante para a economia do país, mas ele produz commodities. Ainda é muito grande a quantidade de lideranças indígenas, camponesas, quilombolas e ambientalistas que têm suas vidas em risco. A posse da terra é um tema que eu acho que não envelhece, ainda é um tema importante, um tema atual. Todos nós precisamos de um lugar para pisar, para trabalhar, para viver, para morar e esse direito é negado em muitos lugares. Para existir precisamos ter fé no território, precisamos estar em algum lugar.”

Torto Arado

“Durante muito tempo busquei uma imagem que pudesse representar essa história. Eu gosto muito dos objetos do campo, a enxada, mas foi em meio a um poema do Tomás Antônio Gonzaga, do século XVIII,  Marília de Dirceu, que encontrei essa expressão: Torto Arado. Eu li na adolescência, eu deveria ter 15, 16 anos quando eu li, e foi um dos versos desse longo poema que eu encontrei a expressão, o frio ferro do torto arado. Naquele momento a história já se desenhava na minha cabeça, não como ela foi contada hoje, mas acho que é a semente dessa história, e eu nunca esqueci desse título. Comecei a reescrever o livro quase 20 anos depois, com outro título e quando estava pela metade do livro eu disse: ‘olha, essa é aquela história que eu estou escrevendo, é a história de muito tempo que eu estou escrevendo e precisa ser chamada Torto Arado’. Esse objeto não envelhece na história, no livro, no romance. É um objeto que foi manejado pelos trabalhadores escravizados daquela fazenda e passou tanto tempo, por isso que ele está enferrujado, velho, torto, porque ele é um objeto muito antigo e a vida das pessoas passaram tanto tempo após a abolição, manejando esse objeto antigo que parece ter resistido a tudo na fazenda, que é o arado velho, enferrujado e torto.”

Primeiro em Portugal

“Quando eu escrevi esse livro, não tinha uma editora para publicar aqui no Brasil e resolvi arriscar enviando para um concurso literário. Tinha o Prêmio LeYa, dado por um grande grupo editorial português e aberto para comunidade de língua portuguesa. Basta escrever em língua portuguesa e você pode concorrer de maneira anônima. E eu me surpreendi pelo resultado. Meses depois que eu mandei o e-mail, recebi o telefone de um poeta, Manuel Alegre, que era o presidente do júri, dizendo que o livro tinha sido escolhido. Foi a primeira vez que eu comecei  a me perceber como escritor também. Foi por conta desse prêmio que a editora Todavia publicou o livro no Brasil. Semana passada, eu tive notícia do último contrato de edição, para o russo. Já são 28 idiomas.”

Pressão por novo livro

“O livro foi publicado aqui no Brasil e em Portugal, em 2019. E naquele momento, eu participava de alguns eventos. O livro foi crescendo pouco a pouco, e acredito que só começou a encontrar o público depois do Prêmio Jabuti e  do Prêmio Oceanos. Mas eu tinha uma preocupação enorme, de que o que estava acontecendo com o livro não deveria me afetar, que não me tirasse dessa trilha. Eu usufrui, de alguma maneira, desse espaço de poder contribuir com a literatura brasileira. Eu tenho esse interesse pela literatura desde muito cedo. O fazer artístico faz parte da minha trajetória. Eu não posso fazer do meu projeto literário se resumir a um único livro. Desde o início, de imediato, estabeleci um pacto comigo mesmo: falar sobre o Torto Arado da porta da minha casa pra fora. Vou falar desse livro, continuar a falar e eu vou falar, mas daqui pra dentro eu continuo a mesma pessoa. Preciso entender o que é que eu preciso escrever, o que é que está nesse projeto literário, o que está nesse plano. E eu precisei me satisfazer com isso, para olhar para o público e defender aquilo que eu estava fazendo, que eu escrevia.”

Carrasco

“A Oração do Carrasco é um conto alegórico que fala sobre os carrascos da história e em um momento eu faço referências – desde Joana Darc até Margarida Alves, da Paraíba –. de como essas pessoas foram atingidas por esse outro ser humano que estava executando essa função. Procurei mostrá-lo sem desumanizar esse carrasco, eu procurei o que havia de humano nele.”

Traduções

“Tenho uma relação de cordialidade com os tradutores e me coloco aberto para que eles encontrem a melhor maneira de traduzir essa história. Não são todos que me procuram, mas quando me procuram, me procuram da maneira mais diversa. Ano passado, estive no Japão e encontrei a tradutora, a Chika Takeda. O tradutor em inglês, o Johnny Lorenz é outro que se tornou um amigo. Ele é perfeccionista e foi recompensado pelo trabalho realizado, pois foi a primeira vez que ele chegou à final do Booker Prize. O livro também chegou à final de um prêmio da Universidade de Oxford. A tradução do Johnny chegou à lista de Dublin Literary Awards, ou seja, esse perfeccionismo dele ajudou de alguma maneira, porque o trabalho dele foi reconhecido, é importante. A primeira tradução do Torto Arado foi para o italiano. O livro acabou de ser publicado na Bulgária, na Coréia, e recebi ontem a edição para o macedônio.”

Literatura Infantil

“Vivo cercado de crianças que vivem me pedindo histórias para contar. Comecei cheio de temores. Será que eu consigo falar diretamente a esse público? Mas aí eu lembro que todos nós fomos crianças e que, em alguma medida, isso é o tempo em que a gente consegue voltar a esse lugar, a esse universo. Há muitos anos visitando propriedades no interior da Bahia, encontrei trabalhadores, agricultores, que contavam, que tinham chegado naquele lugar para cultivar arroz. O gerente da fazenda, na época, dizia, tragam as crianças, porque as crianças são importantes para espantar as pragas. E as pragas eram os pássaros. O chupim que descia e comia a produção. Eu queria mostrar o olhar da criança, pela primeira vez, encontrando essa praga. O que a criança pensaria? O que a criança faria? De que maneira encararia aquele trabalho? No interior de São Paulo encontramos a jovem artista Manuela Navas, ilustradora da obra. Eu gostei do livro porque as imagens que estavam nela, elas podem ser apreciadas por adultos e por crianças.”

Questões sociais para crianças

“Eu ando com crianças e elas me perguntam, por que tem um morador de rua? Por que ele está nele e não tem casa? Essas perguntas já chegam muito cedo para todos, e às vezes a resposta a gente só vai encontrar lá adiante. É importante falar de certas coisas, não censurar, para que a criança cresça consciente do mundo onde ela cresce, do seu entorno. Eu tentei fazer isso, não sei se consegui.”