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Literatura em casa
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Leituras afetivas: quatro livros por Marcio Renato dos Santos

Que tal aproveitar o isolamento social para colocar a leitura em dia? O Sesc Paraná convidou escritores para que compartilhem alguns dos seus livros favoritos, aquelas obras que ajudaram a moldá-los como leitores e, claro, como escritores.

Quem divide com a gente um pouco da sua biblioteca afetiva é o escritor Marcio Renato dos Santos, um dos nomes mais importantes da literatura paranaense contemporânea. Dono de um estilo muito próprio, o autor faz de Curitiba o cenário predominante de suas narrativas e explora os costumes da cidade para construir um universo particular.

Leia abaixo as quatro indicações literárias de Marcio Renato dos Santos

Alguma poesia – Carlos Drummond de Andrade

Cem? Duzentas? Trezentas vezes? Mais, certamente li já nem sei quantas vezes esse que é não apenas o primeiro livro do Drummond, mas talvez uma das estreias mais impactantes. Durante o século 20, ele iria se afirmar como poeta (e que poeta, hein?), inserindo no imaginário nacional alguns de seus muitos versos, como o do poema “No meio do caminho”: “tinha uma pedra no meio do caminho”. Tem tanto neste livro, já no primeiro texto, o “Poema de sete faces”, aquele em que a voz poética sugere que, ao nascer, um anjo torto, dos que vivem na sombra, teria dito a ele: “Vai, Carlos! ser gauche na vida”. Alguma poesia tem muita, muita poesia. Tem mais. A maneira de dizer, e o que é apresentado em versos: a infância, as contradições humanas, a inveja (“Política literária”), o humor, tanto sobre e a partir do amor, e do desamor, que eu não devia te dizer, mas essa lua, mas essa cerveja e esse vinho, botam a gente comovido como o diabo.

Dinorá – Dalton Trevisan

Após A polaquinha (1985), experiência que dialoga com a estrutura de romance, e depois de Pão e sangue (1988), reunião de contos escritos com toda maestria, recursos e linguagem que o consagraram (inclusive, sob o impacto do texto impecável de João Ferreira de Almeida), Dalton Trevisan inova, de fato, em Dinorá. Neste livro o contista mostra que é possível escrever conto do jeito que ele quiser, por exemplo, fazendo crítica como se fosse um crítico (o que ele também é). “Um conto de Borges” discute um texto do célebre escritor argentino, “Capitu sem enigma” traz argumentos para confirmar que a personagem-central de Dom Casmurro inegavelmente traiu Bentinho, enquanto em “Esaú e Jacó” a narrativa faz uma crítica demolidora ao romance homônimo de Machado de Assis. Há munição contra quase todos, para Curitiba e, em “Turin”, distribuída a ícones culturais da cidade. “Cartinha a um velho poeta” consegue traduzir o que foram, são e serão os chamados poetas de província: “não fosse pai, jurava nunca viu uma mulher nua. […] Não sabe de que recheio os sonhos são feitos. Jamais leu no coração da amada, esse ninho de tarântulas cabeludas”. E há desconstrução, sugerida com ironia, do próprio autor em “Quem tem medo de vampiro?”. Não, Dalton Trevisan não se repete. É imprescindível abandonar lugares-comuns e ler, reler a obra do autor que a partir de Dinorá apresenta contos cada vez mais breves e implacáveis.

Distraídos venceremos – Paulo Leminski

Conheci Feliz ano velho (1982), romance do Marcelo Rubens Paiva, e desabalei em busca de outros livros que tivessem aquela linguagem e dialogassem com o adolescente que eu era no fim da década de 1980. E, “pelos caminhos que ando/ um dia vai ser/ só não sei quando”, apareceu Distraídos venceremos. Li a obra de capa vermelha, amarela, branca e cinza mais de duzentas, trezentas, quatrocentas vezes. Conheço os versos de todos os poemas, os breves, então, posso falar continuamente deles e sobre eles. O ritmo, todo o som, a força das palavras, a sensação de liberdade ao ler e reler a obra: tudo me encantou na poesia do Leminski durante anos, até eu nem precisar mais ler: os poemas habitavam o meu imaginário. E, “ano novo/ anos buscando/ um ânimo novo”, deixei o livro na estante por mais de uma década – as páginas do exemplar que tenho ficaram amarelas. Em 2013 apareceu Toda poesia e viajei outra vez não apenas nos poemas de Distraídos venceremos, mas também nos outros títulos e poemas do autor de uma obra capaz de seduzir e monopolizar quase toda a atenção daquele adolescente que fui: “abrindo um antigo caderno/ foi que eu descobri/ antigamente eu era eterno”.

Como eu se fiz por si mesmo – Jamil Snege

Às vezes, Viver é prejudicial à saúde (1998) é o livro do Jamil que eu mais gosto. Passo, então, a cultuar O jardim, a tempestade (1989) como a obra máxima dele. Em seguida, tenho a convicção de que Os verões da grande leitoa branca (2000) reúne o que há de mais expressivo no legado do amigo que partiu em 16 de maio de 2003. No momento, Como eu se fiz por si mesmo (1994) é a obra do Jamil que mais releio, com a qual me encanto e lembro dele. Em 274 páginas, o Jamil retrata algumas nuances da realidade em Curitiba na segunda metade do século 20 ao mesmo tempo em que recria, em fragmentos, o seu percurso. A narrativa me arrebata desde a primeira vez em que li, por exemplo, que “trágico ou não, o destino é uma força cósmica, faz você colidir com os deuses. A carreira é um destino amestrado, decaído, dissuadido, sem fervor. […] O destino é nocivo à tribo. A carreira é nociva a você”. A descrição de como e quando conheceu o mar é inesquecível, minutos antes de sua infância sumir para sempre na curva de uma estrada. Independentemente do assunto, seja a morte, o amor, separações, vexames ou aparentes fracassos, é o jeito como ele articula a narrativa que torna visível a potência de Como eu se fiz por si mesmo. Cada capítulo, são 47 ao todo, traz uma possibilidade de texto, seja crônica, carta, conto, jornalismo, roteiro para cinema, dramaturgia e/ou confissão. Na página 98, ao revelar como elegia os parceiros de jornada, identifico uma possível definição para quem sou e, por isso, gosto tanto do magnífico fragmento: “Pessoas sadias, que dormiram bem, que saem à rua com um sorriso meio idiota – essas me repelem. Prefiro os pálidos. Os cabides de roupas mal passadas. Os que nasceram em desavença. Os que têm uma única nota de cincoenta para cruzar o mar noturno”.

Sobre Márcio Renato dos Santos

Marcio Renato dos Santos é autor de 8 livros de contos, entre os quais A cor do presente, publicado em 2019 pela Tulipas Negras, e escolhido este ano, 2020, pela Fundação Cultural de Curitiba para o acervo do aplicativo Curitiba Lê, onde a obra pode ser lida, sem custo, na seção Estante Curitiba. O contista tem narrativas, por exemplo, na antologia Wir Sind Bereit (Lettrétage/Verlag, 2013) publicada na Alemanha, e em O livro branco (Record, 2012), entre outras coletâneas. Todo mês publica 1 conto inédito na Revista Ideias (www.revistaideias.com.br). Também é jornalista e mestre em Estudos Literários pela UFPR. Nasceu e vive Curitiba.